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A Camisa Branca que talvez um dia foi Azul | Conto | 2008
Victor Lema Riqué

Conhece perfeitamente cada canto do planeta e com uma rapidez assombrosa localiza regiões impensadas em segundos. Embora por muito tempo tenha preferido as florestas, sua predileção atual são os desertos.

 

Hoje dedicava o dia inteiro a um de seus preferidos, viajava num zoom profundo pelo deserto da Namíbia. Havia visitado-o numerosas vezes e desde as alturas virtuais ficava deslumbrado com tanta beleza mas, de repente, levou um susto, avistou a figura de um homem que andava lentamente contra o vento. Caminhava pelas dunas com bastante dificuldade em companhia de sua própria sombra que, expandida obliquamente em dobro, interferia secamente sobre o fosco da areia.

 

Ficou surpreso. Era a primeira vez que alguém aparecia em tempo real dentro dos cenários que visitava diariamente. Deu zoom out e como num periscópio ao contrário olhou para todos os lados procurando outras pessoas, mas não achou ninguém. Ficou agoniado e rapidamente voltou para o zoom profundo. O andar do homem era alarmante no sentido de que tudo indicava que estava perdido. Andava num zig zag marcado que se acentuava a cada metro percorrido, ou seja, era o tipo de passo preliminar que quase sempre anuncia a primeira queda... Portanto, estava testemunhando ao vivo o desespero de alguém perdido no deserto. Angustiado, começou a pensar como poderia ajudar esse indivíduo que com certeza estaria sedento, faminto, desorientado e condenado... Não carregava um cantil, nem muito menos uma mochila onde se leva figos, tâmaras, um mapa ou um cobertor. Pensou em gritar e gritou, mas em segundos seu eco interior o fez perceber que jamais poderia ser ouvido. Porém, ele sim, podia ouvir, era o sopro de um vento similar ao scirocco e se fundia com as batidas de seu coração. A força do vento ia redesenhando as formas das dunas e embolsava a desgastada camisa branca que vestia o ser. Se pelo menos caminhasse em sentido contrário a camisa teria a função de vela, dando-lhe impulso e velocidade, mas caminhando nessa direção a camisa era um freio. Um turista desavisado? Um peregrino perdido, ou um sobrevivente de algo? Não lhe interessava o motivo e sim o fato. Passará algum nômade? Alguma caravana? Exposto e desamparado, o homem enfrentava uma tragédia em solidão, que neste caso era assistida por um único espectador... Avisar à embaixada da Namíbia? Poderia ser uma solução... pensou...

 

Interrompeu o acontecimento que o perturbava quando alguém bateu na porta. Abriu e não tinha ninguém mas encontrou um grande pacote embalado cuidadosamente. Frágil, frágil, frágil. Havia várias etiquetas adesivas que alertavam sobre o conteúdo. Imediatamente esqueceu do assunto que o perturbava e com bastante esforço introduziu para a sala o pesado pacote. Não se tratava de uma correspondência equivocada, numa das superfícies da caixa estava escrito claramente seu nome e endereço. Aos poucos foi abrindo a caixa e por fim observou que se tratava de várias peças mecânicas. Deixou as peças enfileiradas no chão e ligou para o porteiro, sabia muito bem que era especialista em consertos de elevador e talvez pudesse ajudar. 

 

Depois de examinar todas as peças, o porteiro afirmou: “Segundo meus conhecimentos de mecânica tudo indica que são as peças de um autêntico semáforo”.

 

Duas horas depois e sem tentar uma possível devolução, um semáforo estava armado e instalado no meio de sua sala. Pendurado no teto, passou a substituir o lustre principal. 

 

Era pleno dia e procurando a escuridão fechou as janelas. O semáforo funcionava tão bem como qualquer outro da cidade e, afundado num sofá, contemplou a mudança sistemática das interfases. O verde e o vermelho tinham exatamente o mesmo tempo, já o amarelo âmbar, não chegava nem a um quarto do tempo das outras duas fases. A cada troca de cor, um som seco pontuava a mudança. As cores eram tão intensas que banhavam por completo a sala, e aos poucos a repetição constante, som, cor e tempo, lhe causaram uma estranha sensação de hipnose e sonolência. Sentia-se num emotivo estado de prazer e cada mudança de cor era um deleite. Seu senso de atenção e orientação tinham-se apurado e sua mente em foco transitava em harmonia.

 

O mais curioso de tudo era que cada cor lhe trazia a imagem bem definida de uma mulher, e cada aparição feminina vinha acompanhada por um fundo musical. O sentido de cada mulher contradizia com tudo o que já

tinha lido e ouvido falar sobre o significado das cores. O verde lhe apresentava uma mulher nervosa junto com uma sinfonia que o deixava em estado de alerta, do vermelho surgia uma mulher calma e uma melodia que lhe dava paz, e por último, o amarelo lhe trazia uma mulher que acompanhada de sons imperceptíveis se resumia em pura insignificância. Das três, talvez esta última fosse a que mais lhe atraía, mas de toda forma, cada uma delas, a sua maneira, lhe traziam conforto e tudo se transformava num estado geral sublime que nunca gostaria que terminasse. Chegou a pensar no inventor dos semáforos, quem seria? Um cientista obcecado em organização ou um engenheiro desempregado durante a revolução industrial? Mas, para descobrir isso, teria tempo mais tarde.

 

Depois de horas e horas deleitando-se com a repetição constante dos elementos, percebeu que as cores já não eram tão nítidas como  o começo e aos poucos como dentro de um liquidificador, as cores, os sons e as mulheres foram se  misturando até chegar a um resultado final: marrom. O processo de mistura foi gradual e teve a companhia do desajuste sonoro que marcava a mudança de cada fase. O marrom foi ficando cada vez mais escuro e o som mais desconexo, por último algumas faíscas saíram do engenho e as três luzes se desvaneceram num dégradé contínuo acompanhadas por um mecânico suspiro final.

 

Passaram algumas horas e seu estado de foco e orientação sublime foi desaparecendo. Abriu as janelas procurando luz, mas como já era noite teve que ligar as luzes sentindo de imediato a falta do lustre principal. A experiência de ter um semáforo em casa e que agora queimado não servia para mais nada lhe solicitava como epílogo final uma ducha... Saiu do banheiro tropeçando sentiu muita sede e muita fome e procurando a cozinha em zig zag, esbarrou na mesa do computador. Ficou estático e seu ventre gelou, no ato percebeu que tinha esquecido do homem perdido no deserto. Antes de clicar na tela imaginou a cena que veria em segundos: o corpo do homem esticado na areia sendo devorado por todo tipo de lesmas e insetos... Tomou coragem e clicou com receio, viu aparecer imediatamente a mesma imagem que havia deixado horas atrás, mas desta vez sem a presença do homem... Abriu o zoom e não avistou ninguém, então, aquela angústia surgida pela grande impotência se multiplicou ao sentir indignação, vergonha e um grande sentimento de culpa por não ter participado de um possível resgate do qual não tinha certeza.

 

As imagens do homem perambulando pelo deserto o atormentaram para sempre. Haveria sido salvo ou teria sucumbido confirmando sua sentença?

 

Passou a sonhar constantemente com uma camisa branca sendo levada pelo vento. Uma camisa branca que talvez algum dia foi azul.

 

Só depois de muito tempo voltou a visitar outros lugares, mas dessa vez e como antigamente sua preferência foram as florestas.

Victor Lema Riqué, 2008

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